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Eduardo Galeano e J. Borges: um encontro de mestres


O escritor uruguaio, falecido no último mês de abril, era fã da obra do xilogravurista pernambucano a quem encomendou gravuras para ilustrar o livro As Palavras Cantadas

Publicado: 06/05/2015

“Uma mesa remendada, velhas letrinhas móveis de chumbo ou madeira, uma prensa que talvez Gutenberg tenha usado. A oficina de José Francisco Borges na cidadezinha de Bezerros, no interior do nordeste do Brasil. O ar cheira a tinta, cheira a madeira. As pranchas de madeira, em pilhas altas, esperam que Borges as talhe, enquanto as gravuras frescas, recém-impressas, secam dependuradas no arame de um varal...”

O texto acima descreve o clima do ambiente onde dois grandes mestres e patrimônios da cultura latino americana se encontraram pela primeira vez. Ele também é um trecho da introdução do livro As Palavras Andantes, do escritor e jornalista uruguaio Eduardo Galeano, falecido no 13 de abril, aos 74 anos, em Montevidéu.

Eduardo Galeano visitou a cidade de Bezerros, no Agreste pernambucano, em 1990, para conhecer o xilogravurista J. Borges, depois de ter tido contato com a sua obra no Rio de Janeiro. Ao conhecer o trabalho de J. Borges, Galeano ficou encantado e resolveu pedir para que o artista produzisse xilogravuras para ilustrar As Palavras Andantes.

E assim foi feito. J. Borges passou dois anos e meio produzindo 185 xilogravuras para o mais novo livro do escritor uruguaio, na época. O trabalho de Borges, que já havia ilustrado capas de cordéis, livros e discos e exposto em países como Venezuela, Alemanha, Suíça, México e Estados Unidos, figurou em todas as edições do livro de Galeano, publicado em diversos países.

“Galeano era uma pessoa incrível. Recebi a notícia da morte dele com muita tristeza. Ele era um grande amigo. Muito sensível à minha arte e só me chamava de mestre. Foi como perder uma pessoa da minha família”, lamentou J. Borges. Galeano estava internado em um hospital na capital uruguaia desde o dia 10 de abril, devido a complicações de um câncer de pulmão, que já vinha tratando desde 2007.

Depois do primeiro contato dos dois artistas, a amizade só cresceu. Sempre que Galeano vinha a Pernambuco, eles se viam. J. Borges lembra com carinho de um desses momentos. Eles foram a uma festa na casa do escritor Cláudio Aguiar, em Olinda. Lá estava Ariano Suassuna, Gilvan Samico, Silvia Coimbra e o próprio Cláudio Aguiar. “Passamos uma noite muito alegre, contando história e piadas. Jamais vou esquecer daquele dia. Como jamais vou esquecer de Galeano”, disse Borges.

Perguntado sobre a obra de Galeano, J. Borges disse já ter lido alguns livros e destacou a trilogia Memórias do Fogo, sobre a história das américas, premiada pelo Ministério da Cultura do Uruguai e ganhadora do American Book Award (Washington University, EUA), em 1989. Ele disse também gostar muito do Livro dos Abraços e, claro, do As Palavras Andantes. “Galeano criava histórias lindas e muito engraçadas”, resumiu.

UMA OBRA QUE SUPLANTA 'AS VEIAS ABERTAS...' 

Eduardo Galeano começou muito jovem a enveredar pelo mundo literário e pelo jornalismo. Nascido em Montevidéu no dia 3 de setembro de 1940, aos 14 anos ele já vendia suas primeiras charges políticas para jornais uruguaios como o El Sol, do Partido Socialista. Em Montevidéu, foi chefe de redação do semanário ‘Marcha’, na década de 1960, e diretor do jornal ‘Época’.

O escritor publicou mais de 30 livros em diversos países, quase todos traduzidos no Brasil, entre ensaios, poesias, narrativas, romances, além da obra de economia política ‘As veias abertas da América Latina’, em que denunciou a opressão e amargura do continente. O livro foi escrito no começo dos anos 70, década na qual boa parte da América Latina era governada por ditaduras militares de direita apoiadas pelos Estados Unidos. Ele foi traduzido para dezenas de idiomas e vendeu milhões de exemplares, abrindo o coração e despertando as mentes de milhares de pessoas, jovens e adultos, ao redor do mundo.

Entre essas pessoas, a romancista chilena Isabel Allende. Isabel descreve, na apresentação para a edição em inglês de ‘As Veias Abertas da América Latina’, ter "devorado" o livro quando jovem, "com tal emoção que tive de relê-lo mais algumas vezes para absorver todo o seu significado". Ela afirma ainda que levou o livro para o exílio quando o general Augusto Pinochet tomou o poder no Chile.

No clássico libertário de 300 páginas, Galeano defende que as riquezas que primeiro atraíram os colonizadores europeus, como o ouro e o açúcar, haviam dado origem a um sistema de exploração que conduzira à "estrutura contemporânea de pilhagem", à qual ele atribui a responsabilidade pela pobreza e subdesenvolvimento crônicos da América Latina.

Há alguns anos, o escritor chegou a provocar polêmica ao confessar que as "Veias Abertas pretendia ser um livro de economia política, mas eu não tinha o treinamento e o preparo necessários". A direita latino americana ficou animada com essas declarações. Mas os mais próximos de Galeano sabiam que ele estava descontente não com a mensagem que o livro passa, mas com o formato da escrita.

Em declarações dadas no Brasil, antes de sua morte, Galeano se descreveu como "ainda um homem de esquerda" e elogiou as experiências de socialismo democrático em curso na última década em seu país, bem como no Brasil e no Chile.

“Li As veias abertas nos primeiros anos da faculdade. Depois li muita coisa de Galeano e já não considero que esse seja seu melhor livro. Foi importante, é verdade, compreender o mecanismo do saque das riquezas do continente. Entender que qualquer igreja barroca portuguesa ou palácio espanhol foi construído com sangue e ouro da gente do lado de cá. Mas reduzir Galeano a esse livro é pouco. Como também é pouco reduzi-lo a ‘ídolo da esquerda’, como fizeram jornais e portais editados por gente que nunca o leu. Galeano era um baita cronista. Senhor de uma prosa poética cheia de afeto”, destacou o jornalista e escritor pernambucano, Inácio França.

Entre os livros de Galeano, destacam-se também ‘De pernas pro ar’, ‘Dias e noites de amor e de guerra’, ‘Futebol ao sol e à sombra’, ‘O livro dos abraços’, ‘Mulheres’, ‘As palavras andantes’, ‘Vagamundo’ e ‘Os filhos dos dias’. O escritor uruguaio recebeu o prêmio Casa de Las Américas em 1975 e 1978, e o prêmio Aloa, promovido pelas casas editoras dinamarquesas, em 1993. Em 1999, Galeano foi o primeiro autor homenageado com o prêmio à Liberdade Cultural, da Lannan Foundation (Novo México).

ATIVISMO

Durante o golpe militar no Uruguai, em 1973, Galeano foi preso. Para fugir da cadeia, exilou-se na Argentina. No país vizinho, chegou a lançar o livro ‘Crisis’, mas não teve vida fácil. Em 1976, outro golpe militar, dessa vez liderado pelo general Jorge Videla, na Argentina, coloca novamente sua vida em risco. O nome do escritor foi parar na lista dos esquadrões da morte, que executavam opositores ao regime. Para salvar sua vida, Galeano refugiou-se na Espanha. Só voltou ao Uruguai em 1985, após a redemocratização. Viveu em Montividéu até morrer.




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