A crise brasileira não se explica nem se resolve nela mesma. Insistir nesse reducionismo adia soluções e induz a equívocos.
por: Saul Leblon
A sensação de que o debate progressista gira em círculos e que desse cativeiro não sairá exceto pelo impulso de um novo ciclo de lutas e mobilizações da sociedade brasileira, não deve causar desconforto.
O peso material das ideias não pode ser subestimado, elas são fundamentais para construir o discernimento de uma época, mas a compreensão efetiva da realidade só se completa na prática transformadora, quando as ideias são levadas a provar que pertencem ao mundo através da ação.
Na semana do V Congresso Nacional do PT (que começa na 5º feira e segue até o dia 17 de junho, na Bahia) não por acaso, Carta Maior dedica seu Especial a um filósofo peculiar, Karl Marx, cujo labor teórico, como ele mesmo disse, não pretendia apenas explicar a socedade capitalista, mas transformá-la.
A fusão entre as ideias e a prática, a práxis, vive uma quadra de dificuldades na trincheira progressista do Brasil mas sobretudo na do maior partido desse campo aqui e na AL: o PT.
A perplexidade que acomete suas fileiras diante da transição de ciclo econômico em curso decorre do lento e sofrido reencontro de suas ideias com as ruas e vice-versa.
Ao selecionar textos marxistas sobre a natureza da crise mundial iniciada em 2008, Carta Maior busca contribuir para o efetivo entendimento das raízes da encruzilhada brasileira, que paradoxalmente subordina um governo e um programa eleitos com 54 milhões de votos a uma oposição da qualidade ética e política sabida, chancelada pela mídia que a ela se ombreia.
Originária do ambiente acadêmico, Carta Maior inclui entre os seus compromissos o de contribuir para erguer pontes entre a inteligência brasileira progressista e a luta política concreta para a construção de um Brasil ordenado pela democracia social.
O propósito reafirma a pertinência deste especial de textos marxistas nessa quadra difícil da vida nacional.
É frequente a subestimação da crise global que cerca e condiciona a encruzilhada brasileira, agravando-a.
A omissão avaliza soluções que na verdade não estão credenciadas a liderar o passo seguinte da nossa história.
A compreensão fragmentada ora se rende à panaceia neoliberal que atribui um poder ubíquo aos mercados, ora enxerga na ‘vontade política’ um deus ex-machina, dotado de inexcedível capacidade de respostas, sejam quais forem os impasses contidos na caixa de Pandora da economia e da correlação de forças, que ungiu um quadro de segunda linha da direita, Eduardo Cunha, ao posto de general de campo da guerra conservadora.
Promover o realinhamento dos preços da economia nesse ambiente e alardear que assim será retomado o desenvolvimento faz parte da ofensiva da qual Cunha é o campanário insistente.
O alinhamento dos preços é um dos alicerces da macroeconomia do desenvolvimento. Trata-se de um dos requisitos de qualquer retomada consistente do crescimento. Soterrada pelo câmbio, a indústria brasileira que o diga. Daí a se proclamar, porém –como insiste o ministro Levy, que dado esse passo, os mercados farão o resto envolve o atropelo de três perguntas incômodas aos centuriões do dinheiro grosso: desenvolvimento para quem; desenvolvimento como; e desenvolvimento para quê?
Hoje essas respostas estão sendo ditadas pelo projeto derrotado no escrutínio de outubro passado.
Fetichismo semelhante com sinal trocado comete, todavia, a fé na vontade política que, não raro, colide sua crença com a rigidez das circunstancias desconsideradas.
Vontade política, câmbio ajustado, mas também taxa de juro – não a pontificada pelo rentismo, nem às expensas dos assalariados— incluem-se entre os ingredientes da difícil calibragem do desenvolvimento de uma nação.
Mas a verdade, dura verdade, é que não bastam.
A crise brasileira não se explica nem se resolve nela mesma.
Insistir nesse reducionismo, seja pela fé cega nos mercados, ou a confiança irrestrita no ativismo, adia soluções e induz a equívocos.
Entre eles, atribuir a pasmaceira do país exclusivamente a Dilma – ilusão ruminada por segmentos à esquerda; ou o cacoete daqueles que, transpirando ódio de classe, acusam o ‘voluntarismo lulopopulista’ de responsável pelos gargalos estruturais de um dos sistemas econômicos mais injustos da face da terra.
Os riscos daí decorrentes se equivalem: num extremo, propugnar saídas tão simples quanto falsas; noutro, descartar qualquer opção alternativa ao ajuste draconiano exigido pelos mercados.
Em um dos textos selecionados para o Especial deste fim de semana, o filósofo húngaro István Mészàros chama a atenção para as consequências desastrosas dessa obtusa angulação da crise vivida pelo sistema capitalista mundial.
O discípulo de Lukács sublinha aqui as consequências dramáticas de projetos que ignorem ou minimizem o efeito estruturante da supremacia financeira na economia, no ambiente social e psíquico e, claro, na luta política em nosso tempo.
Como Lukács, Mészàros adverte para a opacidade das relações mercantis, que induz à coisificação das pessoas e a atribuir o papel de sujeito às coisas –o dinheiro e o mercado entre elas.
A financeirização avassaladora de nossa época agrava os efeito dessa lente desfocada sobre a realidade.
O fetichismo de uma lógica financeira sem rosto e sem endereço, mas ubíqua, instaura a hegemonia de um ectoplasma capitalista no imaginário sociedade, a contrapelo dos requisitos econômicos e ambientais de sua sobrevivência.
A colonização dos partidos de esquerda por essa película embaçante é uma das tragédias do nosso tempo.
'O ponto importante’, diz Mészàros, ‘é que eles vêm praticando orgias financeiras como resultado de uma crise estrutural do sistema produtivo. Não é um acidente que a moeda tenha inundado de modo tão adventista o setor financeiro’, alerta o pensador, para disparar em seguida sua síntese iluminadora: ‘A acumulação de capital não pode mais funcionar adequadamente no âmbito da economia produtiva’. Ou seja, a nova hegemonia rentista passa a ser a negação de sua condição inseparável e dependente da verdadeira fonte do valor que é a exploração do trabalho assalariado. A cobra está devorando o próprio rabo.
Essa determinação crucial da luta política hoje é a base de outro texto importante deste Especial , (‘Sistema de Crédito, Capital Fictício e Crise’) de autoria do economista Luiz Gonzaga Belluzzo.
Aqui, trata-se de uma aula marxista para desvelar a mecânica estrutural da concentração de capitais que permite, de um lado, ‘antecipar’ o futuro através do crédito e do investimento; de outro, gerar massas de capital fictício, cujo supremacia sancionada desde Reagan/Tatcher/Clinton resultou em consequências sabidas e conceituadas por Mészàros.
É nesse percurso avesso à convergências que as crises regurgitam uma desordem constitutiva e assumem invariavelmente a forma de superprodução - “de capital e não de mercadorias”, pontua Belluzzo em sintonia com o filósofo húngaro.
Em um escrito sintético, ‘Marx, as crises e a "desregulação financeira’, a também economista Leda Paulani, arremata o escopo dessa nova contradição sistêmica.
Um trecho de sua síntese:
‘Há quase três décadas o capitalismo vem sendo comandado pelo lado financeiro, e isso introduziu mudanças significativas na forma de operar do sistema’, diz ela. ‘A riqueza financeira, constituída em boa parte por aquilo que Marx denominou capital fictício, cresce exponencialmente, enquanto o crescimento da renda real (PIB) e, por conseguinte, da riqueza real, dá-se de modo muito mais lento. Com isso, o sistema fica estruturalmente frágil, dado que o caráter rentista da propriedade do capital se choca com o desenvolvimento vagaroso da produção de valor excedente. As pressões que se exercem sobre o setor produtivo são por isso enormes, justificando toda sorte de barbarismos e retrocessos na relação capital-trabalho. Ademais, o sistema fica muito mais exposto às crises provocadas pelos movimentos dos estoques de riqueza (ativos), que caracterizam o lado financeiro do sistema. Dos anos 1980 para cá, o capitalismo já experimentou pelo menos cinco grandes crises, contando a maior delas, esta que ora presenciamos. Todas essas conturbações foram provocadas pela intensa mobilidade do capital financeiro planeta afora, com a recorrente formação e estouro de bolhas de ativos. A forma de “resolver” essas crises tem jogado para frente, de forma magnificada, o mesmo problema, pois busca salvar a riqueza financeira da fogueira que ela mesma provoca’, conclui Leda.
Não são tertúlias de um salão de chá marxista.
É da realidade bruta que se está falando. Essa que desafia o governo, o campo progressista e o PT , no seu V Congresso, como uma esfinge da História a cobrar a sua decifração, para não morrer.
Como formular e implantar uma política de desenvolvimento focada na construção de uma democracia social nesse ambiente de volatilidade?
Como fazê-lo contra um adversário globalizado e intangível, mas capacitado a exercer, como de fato exerce com virulência, seu poder de veto sobre governos e nações?
Há números eloquentes a rechear esse ambiente em que o próprio movimento de expansão do capital espreme e estreita o alicerce social do emprego e do trabalho qual, paradoxalmente, depende a sua efetiva valorização.
O resultado desse desencontro é a crise.
Essa na qual sobra capital especulativo, de um lado, enquanto a sociedade carece de investimento e de empregos, de outro, ao mesmo tempo em que a retração da atividade reduz a margem de ação fiscal do governo e a demanda patina.
A equação assusta até a insuspeita OCDE, que reúne 35 principais economias do planeta.
Em manifestação recente, transcrita pelo jornal Valor, seu secretário-geral, Ángel Gurría, fez um desabafo: as grandes empresas mundiais estão sentadas em trilhões de dólares de liquidez, mas não investem em produção.
Sem consertar o motor quebrado da economia mundial, Gurría vê com ceticismo a superação da crise.
‘Em um cenário de desemprego ainda elevado e de desigualdade em níveis recordes’, diz o correspondente do Valor em Geneba, Assis Moreira, ‘Gurría não escondeu o desconforto e a inquietação ao constatar que, sete anos após o início da crise, os investimentos globais continuam fracos.’
O paradoxo que desalenta um quadro qualificado da OCDE ilustra a gravidade dos desafios enfrentados por um país em luta pelo desenvolvimento nos dias que correm.
Fatos:
a) o investimento fixo (em bens de produção) nos países ricos está em média 17% abaixo do patamar de 2008;
b) o fluxo global de investimentos estrangeiros produtivos voltou a declinar em 2014;
c) mais de 200 milhões de pessoas continuam desempregadas – número 30 milhões superior ao período anterior à crise;
d) nos países desenvolvidos, a renda média dos 10% mais ricos equivale agora a quase dez vezes a renda média dos 10% mais pobres --contra a sete ou oito vezes há uma geração.
e) enquanto governos carecem de capitais para obras de infraestrutura , a OCDE informa que investidores institucionais tinham US$ 57 trilhões sob sua gestão no fim de 2013, o equivalente a 120% do PIB somado de todo os países ricos.
O empoçamento de capitais na roleta financeira corresponde, nua e cruamente a um empoçamento do futuro na vida de centenas de milhões de pessoas em todo o mundo.
A aberração vai mais longe.
Ao contrário de investir em projetos produtivos, companhias com os cofres abarrotados estão destinando fatias crescentes de seus lucros aos acionistas e grandes investidores especulativos.
É mais uma dimensão da circularidade esterilizante da financeirização descrita por Mészàros, Belluzzo e Leda.
Não se trata de uma mecânica desprovida de protagonismo político.
Organizados em lobbies de pressão, grupos de grandes acionistas, fundos e megaspeculadores interferem na gestão das companhias para impor essa redistribuição dos resultados do balanço.
Uma análise encomendada pelo insuspeito The Wall Street Journal mostra que as empresas do S&P 500 ampliaram substancialmente --dobrando-- seus gastos com dividendos e recompras de ações para 36% do seu fluxo de caixa, em 2013, contra 18% em 2003.
Nesse mesmo período, elas cortariam seus investimentos em fábricas e equipamentos de 33% para 29% do fluxo de caixa operacional.
Reafirma-se aqui a lição da qual o V Congresso do PT deve extrair suas consequências políticas: sem freios e contrapesos políticos, entre eles a ação coordenadora do Estado e dos interesses populares, o capitalismo jamais se disporá –hoje mais que nunca-- a atender prioridades e projetos de relevância do desenvolvimento de uma nação.
Não cabe ilusões.
Políticas de desenvolvimento não lograrão êxito no século XXI –ainda que os preços estejam alinhados, como quer Levy— se não forem providenciados instrumentos de proteção contra a supremacia da lógica rentista.
O PT, seu V Congresso, dará voltas em círculos se não considerar que o partido subestimou a extensão desse descolamento do capital em relação ao seu projeto de desenvolvimento para o Brasil.
Não se trata de uma autocrítica acadêmica.
A subestimação explica, em parte, que se tenha apostado em uma regeneração das condições de mercado anteriores à crise de 2008.
Mais que isso.
Que esse erro de cálculo histórico tenha levado a outro: insistir apenas na prorrogação de estímulos ao consumo quando medidas estruturais de autoproteção do desenvolvimento deveriam ter sido tomadas diante da desordem financeira que veio para ficar –e da qual a crise de 2008 era um regurgito metabólico, não um soluço passageiro.
Quais medidas?
Por exemplo, a desassombra implantação de controles de capitais para coibir ingressos especulativos, fugas, remessas e sonegação.
Mais: uma reforma tributária indutora, que penalizasse o rentista – mas também os acionistas, hoje isentos no Brasil – de modo a tanger a sua volta aos trilhos da produção.
São medidas difíceis?
Sim.
Não serão impunes?
Não.
Ilusão propugná-las hoje?
Mais ilusório é supor que a roda do desenvolvimento poderá ser destravada sem elas.
A desregulação dos mercados financeiros que delegou ao sistema bancário o poder supranacional de mobilizar e transferir riquezas, manipular e sabotar moedas é incompatível com um projeto de futuro que tenha como meta a construção de uma democracia social no país.
Se o V Congresso do PT convergir nesse diagnóstico não poderá declinar de suas consequências.
De uma vez por todas: elas não implicam em declarar guerra ao governo Dilma.
Ao contrário.
Trata-se de repartir o ônus do diagnóstico errado assumindo a cota do partido nesse equívoco. E isso deveria ser dito pedagogicamente à população e à militância.
Abre-se a partir daí o espaço político para assentar as linhas de passagem que o novo quadro de referências exige --sem elidir o imperativo da correlação de forças atual.
A travessia requer a força e o consentimento de uma ampla frente de forças democráticas e populares para vencer os gargalos e resistências do caminho.
Os textos desse Especial pretendem modestamente contribuir para a consistência dessa reconciliação entre as ideias e a prática da luta pela construção da democracia social brasileira.
Sua leitura não promete amenidades. É uma tarefa da práxis: não se trata de explicar apenas, mas de romper o ‘empoçamento’ do futuro brasileiro.
A ver.