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De Weimar a Curitiba: golpe à democracia, ontem e hoje


Publicado: 19/12/2016

Por Roberto Bueno

Da Carta Maior

Uma República, a de Weimar (1920), e outra pretensa, a de Curitiba (2015-2016), e uma perspectiva comum assombrosa, que agora se projeta sobre Brasília (2016-2017) e todos nós. Há quase cem anos, quando recaía sobre Weimar o odor sombrio da pólvora recente de 1914-1918, eis que a têmpera dos homens ainda mal-respondia às inseguranças e a impressão impactante de tanto sangue que escorrera nos campos de batalha e que, chegada a paz, então passaria a cobrar de forma dura a vida dos sobreviventes. A pressão dos tempos e o torpor que se abateu sobre mentes e corações causou inércia política apta a alimentar o cenário adequado para a emersão de uma nefasta conjunção de ideologias.
 
Imersa em um contexto de frustração com a capacidade do governo de enfrentar as crises em Weimar e face ao esfacelamento dos partidos políticos, eis que sob tal trilho a ascensão da barbárie nacional-socialista foi facilitada pelo fato de que os campeões da liberdade weimariana adormeceram entre a timidez e a tibieza, pela falta de ousadia, e de convicção sobre o valor da democracia, também embalados pelo descompromisso com o republicanismo e a escassa coragem cívica para agir em sua defesa. Assistiram passivamente a erosão das garantias jurídicas e de suas instituições, como se estivessem no aguardo do anjo salvador que, finalmente, nunca aterrissaria para a obscura missão redentora, senão apenas para o beijo escorregadio e frio de morte e defenestramento das instituições democráticas.
 
Weimar conheceu seus mais graves dias devido a conjunção de dois fatores diferidos no tempo, a saber, as consequências econômicas devastadoras do Tratado de Versalhes e, dez anos depois, a gravidade dos efeitos da quebra da Bolsa de Wall Street em 1929. A isto deve ser somada a importância decisiva da inércia mesclada a tibieza dos atores políticos e das instituições, que virtualmente alimentaram as condições de possibilidade para o recrudescimento da crise a níveis inauditos cujo desfecho é bem conhecido. A crise econômica foi fortalecida pela cultura política autoritária e pelas práticas fascistas, transgressoras da legislação democrática com o desassombro dos homens que creem carregar todas as razões, virtudes e fins elevados deste mundo, o que os legitimaria a impô-los. Ontem como hoje, a tradição autoritária foi cultivada em atos preparatórios, exalando o odor fétido da traição à Constituição e à República, e ainda sob o signo das liberdades foi sendo cozido o fascismo, temperado com as doses maciças do ódio que o inspira. 
 
Em Weimar, como em Curitiba, a mídia cumpriu um papel ideológico relevante, em ambos os casos dilapidando o patrimônio do Estado democrático de direito ao apoiar a ascensão de forças autoritárias afinadas com o fascismo. A mídia operou em dupla via, deslegitimando o governo democrático e alimentando a omissão através da semeadura da desilusão políticas nos atores sociais, que ao sofrer o choque midiático são estimulados à inércia, neutralizando a reação contra a consolidação antidemocrática. 
 
Weimar sofreu o agudo mal derivado dos movimentos oligárquico-autoritário-empresariais voltados a corrosão da democracia. Na década de 1920, como hoje em Curitiba, ocorreu o ataque a Constituição, neutralizando-a em pontos centrais, cuja atualidade é preciso entender a partir dos mil tons que o fascismo pode assumir, inclusive através das ações de homens togados que não estão a serviço do Estado, mas de determinada ideologia autoritária. Hoje o solapamento da Constituição ocorre através da associação entre as forças antiparlamentares com o grande poderio capitalista paulistano que as patrocina. Ontem, como hoje, o projeto antidemocrático precisa de bode expiatório para o caos pacientemente cultivado pela estratégia de cultura do ódio e da intolerância fascista. 
 
O ódio foi sendo semeado por irresponsáveis políticos radicais de direita cujos interesses diretos foram sobrepostos ao público sem que a esquerda lograsse compreensão suficiente, e eficiente, de todo o processo em curso para unir forças antes que a ilegalidade se tornasse a regra. A busca pela encarnação do inimigo do sistema foi a lógica orientadora do autoritarismo de ontem, como o de hoje, realizando o duplo movimento de patologizar e, logo, criminalizar o outro. Era preciso exterminar os entraves de tudo quanto separava a Alemanha de seu grande destino, e para tanto era necessário eliminar as “existências parasitárias” (parasitenhafte Existenzen), assim como hoje o ovo da serpente fascista redesenha os seus novos inimigos históricos sob o pretexto do desenvolvimento econômico.
 
A desarticulação do republicanismo favorecia o nacional-socialismo, pois tolerância e pluralidade não apoiaria um regime frio, autoritário e cruel. A extrema direita alemã no período weimariano disseminava os valores heroicos e do extermínio do campo progressista, indivíduos considerados antipatriotas, inimigos dos genuínos valores germanos. A realização deste projeto demandava sepultar sentimentos de solidariedade e fraternidade em favor do despertar em seu lugar dos piores e mais funestos sentimentos humanos, e para isto a detecção de inimigo(s) era a estratégia mais eficiente. Ontem, como hoje, os articuladores da derrocada da democracia foram hábeis para construir o arquétipo de seus inimigos, e assim como os judeus foram identificados como responsáveis pela debacle econômica alemã, hoje, no Brasil, com o indispensável apoio midiático, o novo responsável por toda a ordem de males é o campo progressista, especialmente o Partido dos Trabalhadores.
 
Não foi necessário revogar a progressista Constituição de Weimar para que a passagem fosse aberta para o nacional-socialismo e isto evidencia as manobras constitucionais possíveis. As aparências foram mantidas mas leis especiais como a Lei de Concessão de Plenos Poderes de 1933 (Ermächtigungsgesetz) corromperam a ordem democrática. A concessão destes poderes a Hitler pelo Parlamento para que enfrentasse os propagandeados altíssimos riscos históricos encarnados pelo incêndio do Reichstag, foi o pretexto para a instauração da exceção. Ações parlamentares que atropelam a Constituição precisam ser travadas. O mero consequencialismo orientado por razões econômicas supostamente calçado na legalidade pode facilmente desconectar-se dos valores democráticos. Que Curitiba não venha a ter o mesmo desfecho de Weimar, malgrado o empenho togado curitibano para que os nossos dias venham a ser mais que sombrios.
 
Roberto Bueno é professor da Faculdade de Direito. Universidade de Brasília (UnB / CT)



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